7 de fevereiro de 2014

Romance inspirado em Bakunin

Romance tem herói inspirado no líder anarquista Bakúnin - Renato Pompeu - Em magnífica tradução de Fátima Bianchi diretamente do original em russo (infelizmente não é mencionada a edição de que foi feita a traduição do livro, cujo lançamento data de 1855), a Editora 34 acaba de publicar o monumental romance russo “Rúdin”, do primeiro grande romancista russo a fazer sucesso no Ocidente, Ivan Turguêniev (1818-1883, por sinal os mesmos anos de nascimento e de morte do pensador comunista Karl Marx, para dar uma ideia da intensidade da fervilhante fermentação da época em que o romancista viveu). Justamente o retrato brilhante que Turguêniev faz da repercussão de todo esse fervilhar de ideias na retardada Rússia de então é um de seus grandes apelos para os leitores e leitoras do Brasil. Ainda mais atraente é o fato de que o herói do título foi inspirado ao autor russo pela personalidade do famoso líder anarquista também russo Mikhail Bakúnin, o grande rival de Marx na luta pela liderança dos trabalhadores europeus da época, que, vivendo em condições bem próximas da miséria, muito diferentes das circunstâncias bem mais amenas em que vivem hoje, eram conforme o lugar e a época adeptos de diferentes correntes radicais e revolucionárias. Mas atenção: o herói Rúdin é apenas inspirado em Bakúnin, não representa sua figura histórica tal como realmente existiu. Enquanto Bakúnin era um homem de brilhantes ideias e de ações audaciosas por todo o Ocidente, Rúdin, também homem de brilhantes ideias, aparece no romance como recluso e impotente no atrasado, provinciano e mesquinho ambiente social e cultural da Rússia de então. É como se Turguêniev tivesse feito uma experiência de laboratório: vamos pegar esse brilhante pensador e homem de ação no dinâmico Ocidente e colocá-lo na estática e nada empreendedora sociedade russa de 1855. O resultado é que ele continuará sendo um pensador estimulante, mas não para ações concretas – Rúdin só consegue estimular sonhos com uma vida mais colorida e mais livre, não dar passos efetivos para concretizá-la. Ou seja, se trata de um retrato perfeito do “homem supérfluo”, termo aliás cunhado pelo próprio Turguêniev, e que indica os jovens intelectuais russos influenciados pela febril vitalidade de ideias no Ocidente e que, em seu próprio país, ficam condenados a viver a vida indolente e preguiçosa, medíocre e provinciana dos russos que tinham a sorte de não serem servos camponeses ainda presos à gleba, ou trabalhadores manuais urbanos ou ainda serviçais domésticos. Em suma, jovens que, ou eram integrantes da grande aristocracia rural, como o próprio Turguêniev, ou eram integrantes da clientela dessa aristocracia, como Rúdin. Todo o cenário lembra vagamente as “ideias fora de lugar”, termo que o crítico brasileiro nascido na Áustria Roberto Schwarz cunhou para designar as concepções liberais inspiradas na democracia inglesa e na Revolução Francesa que povoavam as mentes de senhores de escravos no Brasil imperial. O cenário principal do romance são os salões de uma mansão rural bem no coração da Rússia europeia em que uma viúva aristocrática vai passar cada verão. Em seu círculo há desde puxa-sacos até homens de mentalidade tacanha, conhecedores apenas das realidades de seu cotidiano mesquinho, sem leituras, sem maiores informações sobre o mundão lá fora, passando por garotas românticas que sonham com uma vida mais autêntica, mais o visitante Rúdin com suas ideias fulgurantes. É como o jovem da grande cidade que chega aos cafundós dos grotões. Ele faz sucesso entre as abonadas anfitriãs locais e entre as moçoilas, gerando ciúmes, inveja e hostilidade por parte dos figurões e das figurinhas locais. Ao mesmo tempo, quanto mais íntima a pessoa fica do herói visitante, tanto mais se decepciona com ele, incapaz de transformar o ambiente mesquinho à sua volta. Turguêniev conhecia bem a realidade que descreve no romance. Nasceu numa família da nobreza rural russa imensamente rica, que tinha uma propriedade no interior da Rússia europeia com 500 servos. Sua mãe, misto do que hoje seria uma perua com o que sempre é uma megera, espancava impiedosamente os servos e, pasmem, até os seus próprios filhos. Ela desprezava qualquer coisa que fosse russa e obrigava a família a falar exclusivamente francês. Isso levou o jovem Ivan a crescer odiando a servidão da gleba e o pseudo-requinte, na verdade brutalizado, dos modos da aristocracia rural russa. Acabou radicando-se na Alemanha e na França e escreveu os primeiros grandes romances russos, esse “Rúdin” e o mais famoso “Pais e filhos”. Um dos grandes méritos da tradução de Fátima Bianchi é que ela procura transcrever as grafias do alfabeto cirílico para uma grafia em português que represente, o mais fielmente possível, a pronúncia russa. Assim, ela escreve “Aleksêievna”, “Turguêniev”, “Nikoláievitch”. Boa leitura!