1 de fevereiro de 2014

A educação do cérebro

Da revista Retrato do Brasil - A educadora americana Maryanne Wolf explica, de forma fascinante, como o desenvolvimento da leitura e da escrita através da história ajudou a moldar nossa forma de pensar - por Renato Pompeu - Ver é natural. Falar é natural. Mas ler não é natural, nem é natural escrever. Cada bebê nasce com genes que lhe possibilitam especificamente ver, e outros genes que lhe possibilitam depois especificamente aprender a falar e a entender o que lhe dizem. Mas ninguém nasce com genes que lhe possibilitem especificamente aprender a ler e escrever. Durante as dezenas e dezenas de milhares de anos da existência da espécie humana, só nos últimos poucos milênios é que se desenvolveram a escrita e a leitura. O ato de ler tem sido mais estudado pelos neurocientistas do que o ato de escrever, e, mesmo assim, só nas últimas poucas décadas. Descobriu -se que, ao contrário do que acontece com a função da visão e a função da fala, no cérebro não há, na origem, áreas ou circuitos neurais especializados na função da leitura. Para o ser humano conseguir ler, o cérebro de cada um passa, durante pouco tempo, por uma verdadeira continuação individual da evolução biológica que redundou, após milhões e milhões de anos, na espécie humana. A partir do início do aprendizado da leitura, o cérebro reaproveita áreas e circuitos neurais antes especializados em outras funções, particularmente as áreas e circuitos que relacionam visão e fala, e mesmo cria novos circuitos e especializa novas áreas. Em outras palavras, a experiência de vida pode alterar as próprias estruturas biológicas do cérebro, que fica diferente do cérebro herdado geneticamente. Tudo isso gerou novas formas de pensar, especialmente formas lógicas e conotações evocativas, a partir do processo de leitura contínua e demorada. Os alfabetizados desenvolveram formas de pensar muito mais ricas do que os analfabetos, muito mais abstratas e abrangentes. Não se sabe se todo esse patrimônio pode ser afetado pelas novas formas de leitura proporcionadas pelas mídias digitais, que são bem mais breves e, principalmente, totalmente descontínuas. Será que o pensamento lógico, tal como o conhecemos, está ameaçado? Na verdade, tudo que se sabe é que as mudanças a partir das novas formas de ler podem até ser vantajosas. Afinal, já se descobriu que muitas pessoas disléxicas, a partir do que aparece como desvantagem, conseguem desenvolver mais habilidades do que as pessoas comuns. Uma pessoa comum precisa de centenas de circuitos neurais para poder aprender a ler. Uma pessoa disléxica pode precisar de milhares desses circuitos neurais para conseguir o mesmo resultado de aprender a ler, e depois de já estar lendo pode usar parte desses circuitos para outras coisas, ficando assim em posição de vantagem em relação às pessoas comuns. Um exemplo? Em criança, Albert Einstein era disléxico. Os três parágrafos acima podem servir como resumo do interessantíssimo e importantíssimo livro Proust and the squid – the story and science of the reading brain, da educadora americana Maryanne Wolf. O título se traduz por “Proust e a lula – a estória e ciência do cérebro leitor”. E se justifica pelos fatos de que o escritor francês Marcel Proust foi um dos que mais se preocupou com a importância e o significado da leitura e de que os primeiros estudos realmente empíricos da neurociência, sobre transmissão de informações pelos axônios, começaram, poucas décadas atrás, pela observação do cérebro da lula. Maryanne é perfeitamente qualificada para falar de leitura. Professora do Departamento Eliot Pearson de Desenvolvimento Infantil na Universidade de Tufts, no estado americano do Massachusetts, na Cadeira John DiBiaggio de Cidadania e Serviço Público, é diretora do Centro de Pesquisa sobre Leitura e Linguagem. É doutora em Desenvolvimento Humano pela Escola de Educação da prestigiosa Universidade de Harvard, onde pesquisou os relacionamentos entre a neurociência, o aprendizado da leitura e da fala e a dislexia. Também trabalhou, sempre nesses campos, na Escola Médica de Harvard e no Departamento de Psiquiatria do Hospital McLean, de Boston. Casada, é mãe de dois filhos um deles disléxico. Originalmente, ela era licenciada e mestra em Língua Inglesa. Contou numa entrevista como, com essa formação inicial, se tornou uma pioneira da neurociência aplicada à educação e a líder de novas técnicas de alfabetização específicas para disléxicos. Quando se formou em Inglês, esperava dar aulas numa reserva indígena do estado da Dakota do Norte, mas em vez disso foi enviada a uma escola para filhos de filipinos pobres numa aldeia do Havaí, onde os alunos falavam dez línguas diferentes, havia crianças com síndrome alcoólica fetal e outras com deficiência mental. Disse Maryanne que tudo isso a levou a perceber que aprender a ler é crucial na vida de toda pessoa. No ano seguinte, ela estava já no Laboratório de Leitura de Harvard. “Acabei ficando totalmente envolvida com a neurociência porque realmente me pareceu que iríamos obter respostas de modos que nunca tivéramos antes na educação para entender o que está acontecendo no cérebro leitor. Então, essa se tornou a minha missão: entender o que é que o cérebro faz quando lemos e como podemos traduzir esse conhecimento, esse conhecimento teórico fundamental para aplicações muito práticas em termos de diagnóstico, avaliação e, o que é mais importante para mim, de intervenção” para ensinar a ler qualquer criança, por mais dificuldades que tenha, como o seu filho. Seu livro é mais um exemplo de obra multidisciplinar, pois envolve arqueologia, história, psicologia cognitiva e neurociência, entre outros campos. Ao que consta, é a primeira vez que, do ponto-de-vista científico, se faz um paralelo entre a história milenar das várias fases do desenvolvimento da escrita nas diferentes civilizações e as várias fases do aprendizado da leitura por parte de uma criança. Ao contar a história da escrita desde os antigos sumérios e egípcios até o alfabeto com vogais elaborado pelos gregos, ela a compara com a vivência da criança que aprende a ler. Afinal, sumérios e egípcios (e os chineses) desenvolveram inicialmente pictogramas, figuras claramente representativas de um objeto, como o desenho de uma cabeça de boi. Depois, vieram os ideogramas, em que uma representação estilizada, como uma bola com dois prolongamentos, indica uma palavra, como a cabeça do boi (a bola, a cabeça; os prolongamentos, os chifres). Até hoje o chinês usa ideogramas em sua escrita, milhares deles, cada um indicando uma palavra. [isso é do livro? Há como usar como ilustração?] No Oriente Médio, os ideogramas evoluíram para símbolos fonéticos, inicialmente silábicos ou plurissilábicos, com a bola com dois prolongamentos, por exemplo, indicando as sílabas “a-lef” (“alef” é o nome do boi na maioria das línguas semíticas). Em seguida surgiram os alfabetos semíticos, só com consoantes, em que cada imagem, agora chamada “letra”, representava um som específico da fala humana. Entre os gregos, se passou a grafar também as vogais, como a nossa letra “a”, a que eles chamaram de “alfa”, a partir do “alef” semítico, e que é uma evolução... da bola com dois prolongamentos! Do mesmo modo, a criança ocidental, ao aprender a ler, primeiro associa uma imagem (“letra”) a um som, depois duas ou mais imagens a uma sílaba, depois associa sílabas que constituem palavras, finalmente lê uma frase, depois um parágrafo, até ficar em condições de ler um texto mais longo e até um livro inteiro. Maryanne faz a comparação: enquanto nossos ancestrais levaram 2 mil anos para passar da figura (“pictograma”) ao alfabeto com vogais, uma criança ocidental tem de fazer esse percurso... em 2 mil dias. O que, para a espécie, foi uma lenta evolução, para a criança passou a ser uma vertiginosa transformação de seus circuitos neuronais e de seu cérebro como um todo. Aqui cabe lembrar que, até poucos séculos atrás, os leitores ocidentais, na medida em que iam lendo, iam pronunciando em voz alta as palavras e frases, e até hoje muitos balbuciam, ou pelo menos movem os lábios. No século IV, Santo Agostinho, que lia falando alto, se espantou ao ver seu mestre, Santo Ambrósio, ler em perfeito silêncio e sem mover os lábios. Nas universidades medievais, os professores liam em voz alta textos para seus alunos, e nisso é que se constituíam as aulas – por isso até hoje cada professor universitário é chamado de “lente”, ou seja, leitor. Muito interessante é que Maryanne Wolf defende a tese de que, enquanto as crianças chinesas aprendem a falar usando os mesmos circuitos neurais e as mesmas áreas cerebrais utilizadas pelas crianças ocidentais (afinal, nos dois casos isso é determinado pela herança genética), a coisa muda quando se trata de aprender a ler. Segundo ela, como as crianças chinesas aprendem a ler com ideogramas, elas usam circuitos neurais e áreas cerebrais diferentes das utilizadas pelas crianças ocidentais, que aprendem a ler combinando letras que indicam sons consoantes e sons vogais. Mais, ainda de acordo com a autora, isso leva os chineses a pensarem abstratamente de modos diferentes dos ocidentais. Diferentes, ela acentua, não superiores ou inferiores, embora a muitos ocidentais pareça que seus alfabetos são “superiores” ao sistema ideogramático chinês. Também fascinantes são os trechos em que Maryanne Wolf insinua que aprender a ler não traz só vantagens. Ela sustenta isso com as críticas do filósofo grego Sócrates, que muitos estudiosos apontam como analfabeto a vida inteira, à palavra escrita e lida. Afinal, diz a educadora, até Sócrates o ensino grego se limitava a transmitir a sabedoria acumulada em textos escritos, como as epopeias de Homero, sem que os alunos pudessem contestar ou questionar a sua autoridade, tal como ainda hoje os crentes aprendem a se comportar e a fazer julgamentos de valor a partir dos textos sagrados de sua religião. Sócrates defendia que, ao contrário, os alunos deveriam aprender a questionar cada palavra e cada pensamento de seus mestres. Escreve Maryanne: “Primeiro, Sócrates argumentava que as palavras orais e escritas desempenham papéis muito diferentes na vida intelectual de um indivíduo; segundo, ele encarava como catastróficas as novas – e muito menos estritas – exigências que a linguagem escrita impunha tanto à memória quanto à internalização do conhecimento; e, terceiro, advogava apaixonadamente o papel singular que a linguagem oral desempenha no desenvolvimento da moralidade e da virtude na sociedade”. Em outras palavras, Sócrates se insurgia contra a inflexibilidade e a unidirecionalidade da palavra escrita, em comparação com a flexibilidade e interatividade do diálogo verbal; contra a destruição da memória pessoal promovida pela facilidade do recurso a textos; finalmente, a perda do controle sobre a linguagem, pois enquanto no diálogo verbal as pessoas mudam o que têm a dizer, o texto escrito diz sempre a mesma coisa. Imagine-se como ficariam as coisas se os debates no Parlamento ou nas assembleias sindicais, e o contraditório nos tribunais ocorressem apenas... por escrito! Ora, a tão criticada, por sua fragmentação e efemeridade, linguagem digital de hoje, restabelece, afinal de contas, a flexibilidade e a interatividade perdidas pela linguagem escrita tradicional, pois a linguagem digital permite o diálogo e a troca instantânea de ideias até entre multidões de pessoas, e restabelece também o controle de cada um sobre a linguagem. Só não restabelece a capacidade de memorização e de internalização. A partir do precioso livro de Maryanne pode-se especular que, assim como a introdução da linguagem escrita levou a grandes ganhos e a grandes perdas, a introdução da linguagem digital também deverá levar a grandes ganhos, e não só a grandes perdas, como dizem seus críticos. Afinal, não custa lembrar que a palavra “contradição” vem de “contradictio”, que em latim significa “dicção contra”, e que dialética vem de uma palavra grega, “dialektikê”, que significa “prática do diálogo”. Além disso, o sentido original de “processo”, até hoje mantido, se referia ao contraditório num julgamento de tribunal. Talvez, na medida em que a linguagem digital se desenvolva nas próximas décadas e séculos, tenhamos novidades surpreendentes, com novas conexões neurais e novas especializações de áreas cerebrais. - * Jornalista e escritor, autor do romance-ensaio “O mundo como obra de arte criada pelo Brasil”. - Proust and the squid: the story and science of the reading brain - Autor Maryanne Wolf - Editora Icon Books Ltd - Páginas 320 - Ano 2008

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