16 de março de 2011

Gene disso, gene daquilo

Recentemente o Diário do Comércio me encomendou a seguinte resenha:

Mulheres atacam mito do


gene disso, gene daquilo...



Renato Pompeu



A primeira coisa a notar sobre o livro “Evolução em quatro dimensões – DNA, comportamento e a história da vida”, de autoria conjunta das geneticistas Eva Jablonka, da Universidade de Tel Aviv, Israel, e Marion J. Lamb, professora aposentada da Universidade de Londres, é que sua editora brasileira, a Companhia das Letras, reduziu a duas as quatro dimensões originais do subtítulo, pois no original em inglês, lançado há cinco anos, o título era “Evolução em quatro dimensões – variação genética, epigenética, comportamental e simbólica na história da vida”.

As duas cientistas atacam a concepção ainda prevalente, mesmo entre a maioria dos biólogos, de que os genes são o único fator transmitido hereditariamente e de que suas mutações são a única fonte das mudanças que levam à evolução dos seres vivos. Ao contrário, elas demonstram que a herança genética também se dá de forma epigenética, isto é, pelo DNA presente fora dos genes e fora do núcleo de cada célula. E, mais audaciosamente, procuram demonstrar que os animais em geral, inclusive os seres humanos, herdam traços comportamentais de seus ancestrais – e, ainda mais audaciosamente, que os seres humanos em particular herdam noções simbólicas, como a linguagem, das gerações anteriores.

Em outras palavras, elas procuram reabilitar as teses do cientista francês Lamarck, da passagem do século 18 para o século 19, de que os caracteres adquiridos por um ser vivo ao longo de sua existência podem ser transmitidos a seus descendentes, e não só os caracteres inatos, como diz a ortodoxia darwinista vigente, contrariamente ao próprio Darwin, que admitia a transmissão hereditária de caracteres adquiridos.

Para o grande público, já nas suas primeiras páginas o livro apresenta duas grandes surpresas. A primeira é que a edição brasileira consagra definitivamente a forma “caractere” como singular de “caracteres”, quando a gramática tradicional sempre exigiu “caráter”, forma mantida no sentido moral, mas não mais usada no sentido material. A segunda é que a obra demonstra quão ingênua, ou ardilosa, é a mídia, quando fala da “descoberta” do “gene do câncer”, ou do “gene da obesidade”, e tantos mais.

Jablonka e Lamb demonstram inequivocamente que, de todas as doenças transmitidas geneticamente até agora conhecidas, apenas 2 por cento são transmitidas por um gene só, como a doença de Tay-Sachs e a anemia falciforme. Todos os demais 98 por cento são transmitidos por complexas combinações de muitos genes, sendo que nem sempre a mesma combinação de genes dá o mesmo resultado e que esse resultado pode estar associado a outra combinação de genes.

Portanto, o leitor e a leitora estão avisados: da próxima vez que virem notícias sobre a “descoberta” de genes disso ou daquilo, desconfiem. As autoras explicam que essas descobertas são em geral constatações estatísticas sobre a presença de determinado gene em grande parte dos integrantes de uma amostra restrita de portadores de determinada característica. Segundo elas, na quase totalidade dos casos a correlação desaparece quando se analisam amostras mais numerosas – e em todas as situações o artigo científico original citava muitas instâncias em que a característica estava presente, mas o gene não, e vice-versa.

As variações epigenéticas relacionadas à evolução têm sido estudadas por muitos outros geneticistas, que não aceitam mais que a evolução se dê exclusivamente por meio dos genes, como ainda acredita a maioria. Mas esses mesmos cientistas podem, em grande número, se surpreender com a desenvoltura com que as autoras tratam aspectos comportamentais, como a transmissão dita por elas hereditária de hábitos alimentares em espécies animais, ou a herança de traços simbólicos em geral, e lingüísticos em particular, entre seres humanos.

O livro pode ser lido com mais proveito por cientistas do mesmo ramo que as autoras ou de ramos afins, mas Jablonka e Lamb insistem em que sua obra pode ser útil para o público em geral – desde, é claro, que os leigos pulem os trechos para eles difíceis de entender. O livro talvez seja uma indicação de que as cientistas mulheres são mais abertas a novidades do que os cientistas homens.

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