27 de novembro de 2010

Marx e a "Crítica ao Programa de Gotha"

A Revista do Brasil há pouco tempo me encomendou o seguinte texto:


Crônica de uma crítica perdida


Interessante como o tempo é lento e rápido... ao mesmo tempo. Da redação da “Crítica ao Programa de Gotha”, em 1875, pelo pensador alemão Karl Marx, nos separam 135 anos, o que parece muito, mas eu tenho 68, exatamente metade disso, então a mim, hoje, me parece que essa crítica foi escrita há não muito tempo. E a cada dia me parece mais claro que ela deva ser mais conhecida do que jamais foi e deve ser pelo menos tão divulgada quanto o Manifesto Comunista.
Afinal, Marx tinha menos de 30 anos quando escreveu com Friedrich Engels o Manifesto e estava perto dos 60, com muito mais experiência, quando escreveu a carta que Engels publicou depois como a “Crítica ao Programa de Gotha”. Esse programa estava sendo discutido pelas duas facções que depois se fundiriam para criar o Partido Socialdemocrata alemão, até hoje existente. Marx fez várias observações sobre o programa, mas elas não foram levadas em conta pelos fundadores do novo partido.
Quatro coisas me chamam a atenção na crítica de Marx. Em primeiro lugar, ele me parece dar muito menos ênfase ao caminho insurrecional e muito mais ênfase ao caminho eleitoral para o socialismo do que, por exemplo, no Manifesto. Em segundo lugar, ele prega a necessidade absoluta da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. Aqui temos de levar em conta que, em sua época, a imprensa era muito mais crítica dos poderes vigentes do que é hoje em dia. Não sabemos se, hoje em dia, Marx defenderia a liberdade de expressão dos racistas, dos nazistas, como é permitida nos Estados Unidos, ou se a proibiria, como acontece no Brasil e na Alemanha.
Terceiro, Marx defende a necessidade absoluta da educação pública e gratuita. Entretanto, se deve esclarecer que, para Marx, o “público” não se confunde com o “estatal”. Para ele, o caráter público da educação pública, e por extensão da saúde pública e da empresa pública, não se tratava de serviços proporcionados e administrados por órgãos estatais, e sim proporcionados e administrados por todos os membros do público, da sociedade em geral. Marx estava longe de imaginar que o socialismo seria, como acabou sendo no extinto socialismo real, regido por aparelhos, órgãos e empresas estatais sob a direção de corpos de burocratas. Pelo contrário, achava é que toda a sociedade, composta por indivíduos livres e iguais, é que deveria ir assumindo as funções que vinham sendo executadas pelo Estado.
Do mesmo modo que Marx não pensou na possibilidade de, no processo eleitoral, a maioria da população não querer a implantação do socialismo, ou de essa maioria se voltar contra o socialismo após ele ter sido implantado, também não pensou na possibilidade de a maioria da população não se interessar pela administração da coisa pública, seja no socialismo, seja no capitalismo ou seja no regime que for. Aqui devemos lembrar que, para Engels, a diminuição da jornada do trabalho implicaria mais intensa participação política por parte de cada trabalhador, que teria tempo cada vez maior para fazer política. No entanto, notamos que a grande maioria das pessoas prefere dedicar ao lazer, e não à atividade pública, a maior parte do seu tempo livre.
Em quarto lugar, finalmente, quando Marx fala em “ditadura do proletariado”, como fase transitória da passagem do capitalismo para o socialismo, ele não está se referindo a um regime autoritário, sim a um regime com plena liberdade de expressão e de organização, exatamente como acontece nos regimes capitalistas mais avançados, as chamadas democracias burguesas, em que para Marx prevalece a “ditadura da burguesia”. Podemos dizer que, nessa crítica efetuada por Marx, a “ditadura do proletariado” difere da “ditadura da burguesia” exatamente por ir progressivamente democratizando o controle de toda a sociedade sobre os órgãos e empresas estatais. Se isso é ou não uma utopia, é outra conversa. É importante discutir como os seres humanos poderiam viver melhor, mas isso não deve eliminar a necessidade de verificar concretamente como as pessoas vivem e como gostariam de viver. Para mim, o mais impressionante é que apenas o tempo equivalente a duas vidas minhas até agora nos separa dessas cogitações de Marx.

2 comentários:

Marco disse...

Muito boa essa resenha.

Concordo que a "Crítica ao Programa de Gotha" deveria ser mais reconhecida.

Comentando o seu comentário, me detenho sobre a opinião de que as pessoas, em que pese o aumento de tempo ocioso, com a redução da jornada de trabalho, optem pelo lazer, em detrimento da autogestão, a administração popular e não governamental das atividades sociais.
Na verdade, para amortecer os ímpetos revolucionários dessa classe trabalhadora contemporânea ao programa de Gotha, que começava a se organizar, e ter forças para assumir as responsabilidades pelo bem público, foi criada a maior de todas as façanhas do capitalismo, a industria do entretenimento.
O primeiro filme dos irmãos Lumiere data de 1895. A partir de então, é inegável o papel do cinema como lazer e ferramenta de controle social.
Controle esse que se desenvolveu em outras artes, como literatura, teatro e música, mas que veio atingir seu esplendor com a televisão.

Me confrontei com estudiosos de Hannah Arendt, que culpavam o povo por não fazer política, e consequentemente, viverem a vida medíocre de consumidores. Noves fora o contexto, eu penso que atribuir ao cidadão trabalhador, exaurido nas empresas, fábricas ou escritórios, responsabilidade de também manter e zelar pela coletividade pressupõe que se mude o modelo econômico, com consequências jurídicas e estatais e culturais. Do contrário, torna-se um discurso reacionário, pois cobra algo que beira o impossível.

Marco disse...

Também gostaria de falar acerca da ditadura do proletariado. Pelo que entendi, lendo a própria "Critica ao Programa de Gotha", seria uma regime em oposição ao regime vigente, que Marx chama de "ditadura da burguesia", e que os adeptos chamam de "democracia liberal".
Na verdade, não há grande alteração na estrutura estatal, tampouco nas instituições. É um regime de classe.
O que muda é que o interesse que impera é o do proletariado, ao invés da burguesia.
Também depreendi que se trata de um regime transitório, que cria condições para a eliminação das arcaicas estruturas, ao conceder mais poder para os organismos populares (conselhos, que por sua vez foram interpretados por Lênin nos Soviets), alterar a legislação de propriedade privada, entre outras mudanças "não-revolucionárias".

Arriscando um paralelismo, quando o liberal clama por menos estado atualmente, quando a estrutura econômica esta sob os auspícios da burguesia, ele que exatamente o que Marx vislumbra acontecer após a ditadura do proletariado.

Abraços,

Marco