7 de fevereiro de 2010

Uma ficção sobre Tolstoi

Recentemente o Diário do Comércio, de São Paulo, me encomendou a seguinte resenha:

O fim da vida de Tolstoi deu um bom romance

Quase duas décadas depois do lançamento do original americano em 1990, e aproveitando a repercussão do recente filme baseado no livro, com a atriz Helen Mirren e os atores Christopher Plummer e Paul Giamatti, a Record publica agora “A última estação – os momentos finais de Tolstoi”, romance do escritor americano Jay Parini, que é filho de um mineiro de carvão e se formou em Letras, autor de várias obras. Parini é amigo do bem mais conhecido escritor Gore Vidal, por quem foi nomeado seu executor literário.
Na verdade, o título do romance, apesar de a obra ter sido muito bem traduzida por Sônia Coutinho, deveria ter sido traduzido para “A última estação – Um romance do ano final de Tolstoi”. O russo Lev Tolstoi (1828-1910), um dos maiores ficcionistas de todos os tempos, é mais conhecido por ser o autor dos romances “Guerra e Paz” e “Anna Karenina”. Em seu livro, Parini usou o recurso de escrever em várias primeiras pessoas que falam, pensam ou escrevem no decorrer de 1910, mas podem se referir a outras épocas. Entre os narradores, que se intercalam uns aos outros, estão, além do próprio Tolstoi, sua mulher Sofia, seu discípulo Tchertkov, sua filha Sacha, seu secretário Bulgakov, um médico e tantos outros.
Parini se baseou em extensa documentação, particularmente os diários pessoais e cartas e outros textos das várias pessoas envolvidas na trama. Mas seu livro não é um documentário, sim um belo romance, muito bem escrito, com uma desenvoltura estilística pouco frequente em romances históricos e uma reconstrução artística e existencialmente muito bem evocada da época e dos lugares que descreve. O leitor se sente em plena Rússia tzarista do começo do século 20, com seus esplendores do luxo da nobreza, seu ritmo alucinante de desenvolvimento capitalista e industrial, seus camponeses miseráveis, seus intelectuais e trabalhadores urbanos empenhados em diferentes sonhos de transformação social.
O centro da trama, embora haja várias subtramas, são os conflitos entre Tolstoi, sua esposa Sofia e seu correligionário Tchertkov. Tolstoi, nascido na alta nobreza, foi alto comandante militar, até que, passando a ser um grande escritor, abandonou a vida de luxo e de dissipação, abandonou também a vida violenta de oficial militar e passou a pregar uma doutrina do amor universal e de partilha pacífica do “excesso” dos bens dos mais ricos por entre os mais pobres. Tolstoi vivia angustiado pelo dilema entre a vida de conforto requintado que conhecia desde a infância e a vida frugal e modesta que pregava. Vivia atormentado, por exemplo, entre sua sexualidade extrema (teve treze filhos, além de pelo menos um fora do casamento) e sua pregação da castidade.
Sua mulher Sofia, bem mais jovem do que ele, fazia o pêndulo da vida de Tolstoi balançar para o lado do luxo e da riqueza, particularmente porque estava preocupada em assegurar que os direitos autorais do marido fossem herdados pelos seus filhos, e não pela “causa da justiça social”. Além disso, ela se sentia incomodada porque a mansão do marido abrigava permanentemente grande número de militantes do chamado tolstoísmo – doutrina naquele tempo, na Rússia, bem mais atuante do que o marxismo ou o liberalismo – e recebia diariamente dezenas de pessoas, principalmente camponeses, que vinham pedir diferentes tipos de ajuda.
O discípulo Tchertkov fazia o pêndulo da vida de Tolstoi oscilar para o outro lado, o da opção pelos pobres, que envolvia a opção pela pobreza. Tchertkov estimulava Tolstoi a manter uma dispendiosa rede de escolas e de saúde para os camponeses, e mais do que tudo pressionava para que o escritor legasse seus direitos autorais para a “causa”. Sofia amava Tolstoi, Tchertkov amava Tolstoi, mas além desse ponto em comum Sofia e Tchertkov se odiavam entre si. Diante desse conflito entre duas pessoas que ele próprio também amava, Tolstoi se sente dividido também por dentro, até que não suporta mais e parte para uma viagem de trem até chegar à “última estação”.
A notar que os nomes russos estão grafados como se pronunciam, e não como seriam transcritos do alfabeto russo para o alfabeto português. Assim, temos “Liev Tolstói” e não Lev Tolstoi.

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